Pages

sexta-feira, março 04, 2011

[Conto] Não Esqueci do Blog



Um trago.
Como gosto de escrever, minha mente se torna palco para diversos personagens munidos de voz e mente própria. Se fecho-lhes a porta, eles sentam-se e conspiram nalguma sala escura, iluminada apenas por um lustre pobre e empoeirada. Tempos depois, abro a porta e vejo que todo um contexto foi criado, sem meu consentimento ou esforço. E eu me vejo obrigado a relatá-lo, pois se eu fechar a porta novamente, quem sabe o que eles farão, presos nos porões de minha consciência? Que feitos obscuros e malignos eles podem maquinar no inconsciente de meu sono?

Este é uma dessas situações; fui seu refém, mas a esculpi obstinadamente. 

Segue o relato. 

__________________________________________________________________

Um Trago de Whisky, Duas Pedras
Bruno Vinicius Vergatti

Chegou em casa cedo, havia sido demitido; uma confusão dos diabos, envolvendo dois clientes e uma boa soma em dinheiro. O filho do dono da empresa escapou; ele não. Dirigiu-se ao seu barzinho onde mantinha um Johnny Walker em boa temperatura. Pousou o copo no balcão com suavidade, com calma lívida, com o sangue latejando nas têmporas. Apagou o cigarro no cinzeiro e sentiu a fumaça evanescer em sua frente. Todo o espectro de possibilidades escarnecendo de sua maldita sorte. Desempregado, quarenta anos, fodido, dolorido. Maldito emprego difícil. Passava boa parte do tempo fora, acertando os clientes que seu chefe decidia ser necessário acertar. Não era bonito, mas punha dinheiro em casa, comida na mesa e whisky no copo. Duas pedras de gelo, dose dupla. Encarou o copo, âmbar e gelo dançando e se misturando. 

Suspirou. Desafivelou o coldre de ombros, depositando a semi-automática sobre o balcão, carregada e travada. Ruído do metal frio contra o mármore do balcão; gemidos no quarto. 

Por um segundo, suas mãos suspenderam o erguer do copo até os lábios, enquanto seus ouvidos tateavam o interior do quarto que dividia com sua esposa; por um segundo, se imaginou o patético personagem cômico de algum Hanna Barbera sádico e contemporâneo. Eram gemidos. Por Deus que está no céu, eram gemidos, e de sua mulher. Não tinham filhos. 

O sangue virou whisky e duas pedras de gelo desceram pelas veias, goela abaixo, a pistola repousou no balcão. Encaminhou-se até a porta do quarto e escorou-se no batente. Esfregou as costas da mão na cara barbada e pegou outro cigarro. 

***

Enterrou as unhas nas costas do rapaz que a fazia tremer; era bom e o mundo esperaria, enquanto tudo era volúpia e suor. Seus gemidos eram risos, sua dor era prazer, enquanto o amante era fogo e pedra. Em meio aos devaneios do êxtase, um clique do outro lado da porta: o tilintar característico do Zippo cromado de seu marido. Delirando, pôde ouvir as chamas consumindo a ponta do Marlboro, e a tragada profunda que anunciava o inferno. Congelou. O amante, percebendo os sinais da amada, parou. Quis perguntar, ela o calou com um olhar de desespero frio, unhas longas sobre a boca do rapaz. 

***

O tilintar do isqueiro calou os gemidos. Riscou, e teve a nítida impressão de lá dentro, sua mulher ter engolido alguma coisa com o susto. Tragou. Riu do pensamento. Exalou fumaça. 

“Eu me dediquei a você por tantos anos. Lhe dei tudo o que pude… trabalhei como um filho da puta… “

Tragada.

“… Trabalhei como um filho da puta por todo esse tempo… Recusei mulheres tão melhores que você, porque nós tínhamos algo bom, tínhamos um compromisso, algo sério e um acordo, por Deus, tínhamos um acordo. Mas você nunca foi muito boa com acordos, compromissos, palavra, né?”

Tragada.

“Escute, rapaz… eu vou dizer o que vou fazer agora. Eu vou entrar aí e eu vou arrebentar você, está entendendo? Se estiver pelado, se veste. Não é nada pessoal, entende? Mas você invadiu meu território, meu chapa, mijou na minha toca e está comendo a puta da minha mulher. “

Tragada.

Pedidos femininos desesperados do outro lado da porta.

“Fecha a boca, vadia. Eu ainda não terminei.” – silêncio no quarto. “Eu vou entrar, e aí… não adianta tentar pular a janela. Estamos no 6º andar.”

Enfiou o pé na porta logo abaixo da maçaneta e a porta se arreganhou sob sua força; o rapaz, com as calças tortas, sem camisa, a cara branca, magro. A mulher na frente dele, desalinhada, coberta com o lençol de seda que ele gostava tanto. Maquiagem borrada, lágrimas. 

Arrancou a mulher e socou o nariz; uma explosão de sangue, mais um dia de trabalho no Açougue do Costello, era como ele chamava. Seguiu esmurrando, a mulher jogada num canto, vendo o homem trabalhar no que ele sabia fazer melhor. Ela não podia dizer que ele não tinha avisado. 

E também não podia reclamar dos escrúpulos dele; afinal, ele ainda deu tempo do Alê se vestir. O mundo é um lugar estranho: uma hora se está trepando, na outra, suas costelas estão quebrando. 

***

O amante sentiu o gosto do asfalto antes de apagar. Não do 6º andar, teria causado muita sujeira. Foi carregado como um lixo pelo prédio inteiro, ainda meio consciente. Dividiram um elevador com o ascensorista; não houveram perguntas.  Uma ambulância ia chegar: depois do serviço, o marido a havia chamado.

Voltou ao apartamento; a porta arreganhada e uma trilha magra de sangue no chão. Acendeu outro cigarro, e sentiu a mulher tremer ao ouvir o tilintar do isqueiro:
“Eu vou te dizer o que você vai fazer agora… Me serve um trago de whisky, duas pedras… ”

2 Falatórios:

Unknown disse...

Sinceramente? Ficou ótimo!

Tinh0 disse...

Vc sabe que eu não sou de comentar..mas cara..ficou show.
Curto e com conteúdo.
FTW